Todos os santos, a festa de todos!
A solenidade de todos os santos e santas que celebramos no primeiro dia do mês de novembro é muito antiga. Começou em Antioquia, no século IV, e era celebrada no 1º Domingo depois de Pentecostes. Entre os séculos VIII e IX, começou a se espalhar pela Europa e, sobretudo, em Roma quando o Papa Bonifácio IV, em maio de 609/610, dedicou o Panteão (o templo romano em honra a todos os deuses) à beata Virgem Maria e a todos os mártires. A data foi transferida para 1º de novembro quando o Papa Gregório III (731-741) dedicou uma capela na Basílica de São Pedro às relíquias dos “santos Apóstolos e de todos os Santos mártires e confessores, e a todos os justos, que descansam em paz no mundo”. Sua importância, porém, foi enormemente ressignificada com o grande evento eclesial do século XX, o Concílio Vaticano II. Nesta extraordinária celebração da jovialidade da Igreja, na aurora do novo milênio que se anunciava, os padres conciliares refletiram sobre a identidade e missão da esposa de Cristo no mundo contemporâneo. Das quatro constituições que resumem o conteúdo dogmático e pastoral do Concilio (Sacrosanctum Concillium, Lumen gentium, Dei Verbum e Gaudium et spes), aquela sobre a Igreja, a Lumem gentium, é a que mais nos ajuda a refletir sobre este tema tão central de nossa espiritualidade cristã: a santidade.
No seu quinto capítulo, «Vocação universal à santidade na Igreja», encontramos o resumo da compreensão e da proposta dos padres conciliares a respeito do que seja a santidade. Eles começam fazendo uma profissão de fé: «Cremos que a Igreja, cujo mistério é proposto pelo Sagrado Sínodo, é indefectivelmente santa» (LG 39). Fica claro, logo de início, que a santidade «da» Igreja e «na» Igreja é um dado da fé. Nós professamos crer na santidade, e isso significa que ela não é algo que nossos sentidos humanos possam captar imediatamente. Será preciso mergulhar no mistério trinitário, fonte e origem de toda santidade, para compreender seu significado e perceber seus vestígios na história: «Com efeito, Cristo, Filho de Deus, que com o Pai e o Espírito Santo é proclamado “o único Santo”, amou a Igreja como sua esposa, entregou-se a ela para santificá-la, uniu-a a si como seu corpo e a cumulou com o dom do Espírito Santo para a glória de Deus» (LG 39). A partir desta firme e bela afirmação, os padres concluem: «Por isso, na Igreja, todos, quer pertençam à hierarquia quer sejam apascentados por ela, são chamados à santidade» (LG 39). «Todos», portanto, que são membros da Igreja são chamados a manifestar, «nos frutos da graça que o Espírito Santo produz nos fiéis», aquela santidade que é própria do Deus Triuno.
Nos dias atuais, porém, na sociedade confusa e estranhamente conturbada em que vivemos, viver a santidade própria dos membros da Igreja parece não ser tarefa fácil. Não é fácil, antes de tudo, compreender bem de que modo é possível vivê-la. Tendências egocêntricas, presentes em muitos movimentos eclesiais católicos e não católicos, enfatizam atitudes sentimentalistas na busca pela santidade. Muitos a entendem como uma espécie de arrebatamento espiritual, onde o que conta é a sensação de proximidade emotiva e sentimental com o Senhor. A busca da santidade se resume, nestes ambientes, à multiplicação de horas passadas diante do Santíssimo, em orações inflamadas pela invocação de dons extraordinários, especialmente da glossolalia (falar em línguas) ou do chamado “repouso no Espírito”, além de tantas outras manifestações excêntricas da presença do Espírito Santo. É possível que esta via em busca da santidade seja particularmente válida e repleta de frutos para quem inicia seu caminho de enamoramento do Senhor. Contudo, de acordo com o ensinamento conciliar, parece significativamente insuficiente.
Outra tendência muito atual no comportamento cristão hodierno, este mais restrito ao âmbito católico, é a nostalgia do passado e a busca por uma espiritualidade dita “tradicionalista”. Nestes grupos, a busca pela santidade se manifesta como uma forte tendência ao distanciamento do mundo, sobretudo, no âmbito eclesial. A santidade é entendida como busca por experiências de vivência cristã marcadas por certo imperialismo, com expressões arcaicas e ultrapassadas, como o retorno do uso do latim nas celebrações, de paramentos ricamente ornados para os ministros ordenados e regras de vestuário para os leigos, como por exemplo, o uso do véu para as mulheres; sem falar de uma série de comportamentos, inclusive no âmbito familiar e social, que tendem a marcar o distanciamento da vida quotidiana, das pessoas comuns, enfim, do mundo atual em que vivemos.
Esta dificuldade para se encontrar a via que melhor possa nos conduzir à santidade possui inúmeras causas que, infelizmente, não nos cabe discorrer nesta ocasião. Cabe-nos, portanto, apenas recordar as palavras do Sagrado Concílio a respeito do modo como esta se manifesta: «esta santidade da Igreja [...] expressa-se de muitos modos nos indivíduos, que em seu grau de vida tendem para a perfeição da caridade, edificando os outros» (LG 39). «Perfeição da caridade» e «edificação dos irmãos» aparecem, portanto, como manifestação máxima deste entusiasmante caminho. Mas os padres vão além, indicando-nos os elementos constitutivos da vivência da santidade: «Para que a caridade, como boa semente, cresça e frutifique na alma, cada fiel deve de boa vontade ouvir a Palavra de Deus e, com o auxílio de sua graça, cumprir com obras a sua vontade, participar frequentemente dos sacramentos, sobretudo da Eucaristia, e das sagradas ações e aplicar-se constantemente à oração, à abnegação de si mesmo, ao atuante serviço fraterno e ao exercício de todas as virtudes» (LG 42).
A santidade é, portanto, um caminho que pode ser percorrido por todos. Não há segredos, enigmas, tarefas ou exigências humanamente impossíveis; nada de sumamente extraordinário; nada de altamente revolucionário ou inimaginável. Não é algo possível apenas para poucos, por aqueles que vivem de um jeito “estranho”, desligados do mundo ou mergulhados em algum êxtase místico arrebatador. Não! Ela é possível a todos! O Papa Francisco, na Exortação Apostólica Gaudete et exsultate sobre o chamado à santidade, afirma: «muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àquele que tem possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia» (GE 14). E continua: «O Espírito Santo derrama a santidade, por toda a parte, no santo povo fiel de Deus. [...] Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e nas mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Nesta constância de continuar a caminhar dia após dia, vejo a santidade da Igreja militante. Esta é muitas vezes a santidade “ao pé da porta”, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença Deus» (GE 6-7).
Assim, a solenidade que celebramos ao iniciar o mês de novembro não é uma espécie de compêndio dos santos que a Igreja canonizou, ou seja, incluiu na lista daqueles que podem ser venerados como modelos de santidade; como se fosse preciso reuni-los todos num único dia, para não corrermos o risco de nos esquecermos de os honrar durante o ano. Para estes, de fato, estão previstas as datas próprias no calendário litúrgico. Esta solenidade celebra, pelo contrário, a santidade da Igreja, da Esposa de Cristo, que «expande em toda parte o perfume do conhecimento de Cristo», já que «somos para Deus o bom odor de Cristo» (1Cor 2,14s). Ela celebra aquela certeza que pela fé afirmamos a partir de nossa consagração batismal, de sermos «raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de sua particular propriedade» (1Pe 2,9). Que assim vivamos e a assim seja. Amém!
Pe. Eduardo Nery Nunes
Pároco da Paróquia de Santo Antonio, do setor Artur Alvim
Coordenador diocesano dos ministros não-ordenados